Boicote à peça Epidemia Prata da Cia. Mungunzá de Teatro

Há cerca de um ano atrás, num dia de maio de 2017, eu saía de uma psiquiatra e caminhava pela rua, meu destino era o Teatro de Container Mungunzá, eu tinha ido verificar se eu era louca, e agora, eu estava indo avisar ao meu “companheiro” -que me alertava cuidadosamente de que eu estava louca-, de que não, a psiquiatra tinha dito que eu não estava, o que eu estava era sendo psiquicamente violentada e negava.

Há um pouco mais de um ano atrás, esse espaço se fundava na região da Luz, no centro da cidade de São Paulo, território de resistências históricas, através de um termo de cooperação entre prefeitura e iniciativa privada. Ainda que num desserviço e na captura da ferramenta de luta mais ativa daquele contexto os integrantes da Cia. insistissem em chamar sua chegada aplaudida pela GCM de ocupação. Eu vivia uma relação doméstica que eu julgava amorosa com um dos membros da Cia. de Teatro Mungunzá e via de perto e de dentro a manobra colonizadora que se desenhava e tentava de diversas maneiras expor ao meu “companheiro” o que estava sendo dito através das escolhas do grupo. Eu o vi articulando por meses com o coletivo espanhol que prepararia o playground do espaço enquanto insistia que ele atravessasse a rua e fosse se apresentar e conhecer as pessoas que constroem e resistem na região para que juntos pudessem pensar o parque. Que saíssem do modo PARA, tutelar e colonizador e se dedicassem a construir um COM possível. Mas foi inútil, eu fui sistematicamente silenciada, por quase um ano, violentada e desqualificada da minha comunicação. A Cia. decidiu atuar em prol dos seus próprios interesses endossando narrativas de revitalização e gentrificação do bairro. A grade, primeiro gesto empenhado pela Cia. ao chegar no terreno foi por mim questionada ao ponto de um dos membros passar a responder publicamente que eles tirariam um palmo da grade a cada 6 meses e em 2 anos, quando todxs estivessem prontxs, não haveria mais grade. Eu me perguntava e a eles também, todxs quem, Cara Pálida? Mas colono do alto do seu saber tem sempre certeza do que é melhor para o outro. Nós, do Teatro de Sanidades, num gesto performativo até tentamos tirar a grade, mas fomos agredidas por dois deles ao termos nossas ferramentas roubadas. A grade, é só mais um episódio, que trago aqui como exemplo pedagógico, de tantos outros que aconteceram ali.

Eu, há cerca de um ano atrás, em maio de 2017, começava a me separar. São inúmeras as violências domésticas desenvoltas em táticas cínicas que aconteceram durante esse tempo, mas vou me deter nas mais recentes, pois é por razão desses fatos que escrevo.

No engano de que cabe a nós mulheres qualquer restauro afetivo, em agosto de 2017 eu ainda me encontrava com ele e engravidei. Engravidei com um diu e demorei a descobrir que estava grávida. Descobri e num impulso entendi que deveria contar a ele, afinal dizia respeito a ele e a partir desse momento eu comecei a me sentir tragada por toda a crueldade possível presente em um ser. Minha espiritualidade não me levaria a decisão do aborto. Ele ainda assim, como alguém que nunca respeitou o meu não, tentou me convencer em realizar um aborto. O argumento era de que o mundo andava ruim demais para ter uma criança, eu mantive o meu não. Eu não tinha contado a ninguém sobre quem era o genitor, então eu disse para ele, com muita tranquilidade, que ele não precisava assumir nada, que ele podia sair simplesmente e se manter onde estava. Eu entendia que seria ainda melhor assim para mim, pois nós ainda nos encontrávamos mas fazia tempo que algo em mim sabia da covardia e da vaidade que o orientava em tudo. É duro descobrir que se divide a vida com alguém com amor e amizade e de repente esse alguém é nada além de um vampiro. Ele obcecou em antagonizar minhas escolhas, me dizia que tinha vergonha que eu estivesse grávida, que tinha vergonha de contar as pessoas que eu estava grávida, mas que eu precisava deixar ele participar da gestação, pois “afinal eu sou um cara legal, e não pega bem um cara legal não assumir um filho”. Eu fui julgada de tudo pelo machismo de várias pessoas por escolher estar longe. Me digam, com que corpo eu iria ao lado de uma pessoa que diz que tem vergonha de mim fazer um ultrassom? Que tipo avançado de autodestruição seria esse?

Ele seguiu insistindo e me desrespeitando e todos os dias eu acordava em pânico pensando: o que estava acontecendo? O que eu precisava aprender com isso? … até a segunda cena desse mesmo ano nesse mesmo espaço que me leva a um fim. Eu evitava ir ao Teatro de Contêiner por tudo, e ainda a mãe-boa-demais viva em mim, aquela que nos faz crer que seremos nós capazes de qualquer restauro efetivo, ia, muito aos poucos, me empurrando para eu me relacionar com o fato de que não agora que a transformação estava no meu corpo, mas sim ali na frente, eu teria de encontrar um ambiente de saúde com essa pessoa. Então eu fui ao encontro de uma outra pessoa lá, sabendo que eu poderia encontra-lo, mas fui tranquila, confiante do afeto. Eu encontrei com ele nessa cena, o cumprimentei com educação respeitando meus limites, mas ele não. Quando eu fui embora ele gritou me chamando, me cercava com os dele, falando alto dizendo que eu tinha que deixar ele participar, me segurando pelo braço, girando um molho de chaves na mão. Eu comecei a tremer, paralisei, eu queria ir embora, eu o chamava de irresponsável enquanto sentia úmido entre as minhas pernas, eu consegui sair, eu entrei em pânico e atravessei todos os faróis abertos que encontrei pela cidade, eu queria morrer naquele instante, mas eu cheguei ao meu destino e eu estava ensanguentada entre as pernas. Eu abortei no meio do pânico. Tive um aborto espontâneo. E aprendi no ato que havia coisas que o amor movia, coisas que ele não movia, e que não havia o que ser feito.

Eu achei que tinha acabado ali. Mas a obsessão dele em me agredir não cessou até que uma amiga me mostra um vídeo publicado na página da companhia, vídeo sobre o processo do novo espetáculo que preparavam, onde ele substitui pelo meu nome a pessoa num poema do Miró e recita diante de uma câmera, com um olhar perverso, no fim do poema, um mesmo olhar com o qual ele dizia que me amava. O poema diz:

 

Camila caga na rua, não limpa a bunda e também nunca morreu por isso

Camila caga na rua, não limpa a bunda e também nunca morreu por isso

A Guarda Civil Metropolitana não ousa prender Camila,

pois não há nada em código penal que diga que cagar em via pública seja crime

Dizem que Camila não tem juízo

e o mais doido de tudo isso

é que os sem juízo são imunes a deus e a polícia

 

*No poema a personagem é Elza.

 

O vídeo é acompanhado de uma postagem agressiva que chama a diretora do espetáculo de “diretora da porra toda”, quando em nenhuma outra postagem do processo criativo do espetáculo a diretora é nomeada com a mesma agressividade. Quando uma outra mulher pergunta sobre a substituição do nome Elza por Camila na leitura do poema, sem nenhuma menção a minha história, a companhia responde no post público que Camila é uma personagem do entorno. No particular, sugere que a mulher deve ir atrás de ouvir os dois lados da história, revelando a intenção de violência implícita direcionada a mim nessa postagem.

 

transcrição do texto pois os prints não têm qualidade suficiente para leitura:

primeira imagem, post público na página da cia.:

A mulher pergunta:  uau, a troca do nome ELZA por CAMILA é alguma homenagem a alguma mana destemida e desafiadora?

a cia. responde: O Teatro de Contêiner fica numa região muito vulnerável. Estamos usando nomes de alguns parceir@s que estão em situação de rua e frequentam o teatro… Camila, João, Fernando, Cícero, Lucas, Gabriel, Robson… !!! Inclusive , existe uma menina que se pinta de prata e chama Laura Paula (o nome dela não tem o “de”)

segunda imagem, numa mensagem privada à mesma mulher a cia. complementa em dizer: Estamos montando um espetáculo (epidemia prata) que tem uma cena da Camila (moradora de rua e frequentadora do “fluxo”) que entrou num debate promovido pelo “é de lei” e todos ficaram sem saber o que fazer quando “o assunto” chegou. Foi um momento muito significativo da nossa estadia no Teatro de Contêiner, cuja memória esta sendo jogada em cena. Por isso trocamos “Elza” por “Camila”. Antes de tirar conclusões, pergunte para @s propositor@s do vídeo. Sempre há dois lados da moeda. Abraço 

Qual o outro lado se a mulher que pergunta não cita minha história? Há então duas intenções, dois lados da moeda para esse vídeo? Com essa afirmação a cia. revela a intenção de violência implícita direcionada a mim nessa postagem.

 

Custei, mas motivei-me enfim a chamar um BASTA a essa possibilidade dos homens seguirem difundindo com suas táticas cínicas violências tão sofisticadas.

Convoco todas as pessoas dispostas a definitivamente não mais atualizarem coreografias que nos violentam às mulheres que boicotem a peça Epidemia Prata, da Cia. Mungunzá de Teatro, que tem estréia prevista para dia 23 de maio, no Sesc 24 de maio. Peço que compartilhem com outras mulheres e pressionem o Sesc pelo cancelamento da peça. Vamos retirar palco e microfone onde encenam violência, vaidade e covardia. MACHISTAS, NÃO PASSARÃO.

Comments are closed.